Morreu na manhã desta terça-feira, o artista plástico Rubens Gerchman. O carioca tinha 66 anos e estava internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo para se tratar de um câncer no pulmão.
Gerchman nasceu no dia 10 de janeiro de 1942, no Rio de Janeiro.
No início, a gravura
Nascido no Rio de Janeiro. Iniciou sua aprendizagem artística em 1957, cursando as aulas noturnas de Desenho do Liceu e Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e já no ano seguinte começou a trabalhar como programador visual em revistas e casas editoras cariocas, o que fez até 1966.
Em 1960 matriculou-se na Escola Nacional de Belas-Artes, tendo sido aluno de Xilogravura de Adir Botelho, mas afastando-se do curso em 1961. A sua primeira mostra, de desenhos e litografias, teve lugar em 1964 na Galeria Vila Rica, mas só em 1965 realizaria uma individual de repercussão, na Galeria Relevo, quando começam a surgir os temas urbanos que iriam caracterizar nos próximos anos sua pintura.
Modernista e ativista
Também em 1965 participou de Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tornando-se desde logo um dos principais representantes da vanguarda carioca – posição que sua presença em futuras coletivas de vanguarda, como
Pare! (RJ, 1966),
Opinião 66 (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro)
Nova Objetividade Brasileira (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967) somente viria reforçar.
O artista, visto por
ele mesmo
Num depoimento publicado no mesmo ano de 1967 na revista GAM, Gerchman, com cerca de 25 anos, assim sintetizava sua carreira até então:
«A primeira exposição, em 1964, “quando descobri meu mundo interior”; a exposição na Galeria Relevo, em 1965, “onde conscientizando a multidão pela primeira vez, situei-me no mundo”; o quadro-cartaz do “Casal Fartura”, exposto em Opinião 65, “primeira tentativa de utilizar o cartaz e a imagem de jornal ou revista em um novo contexto – a tela, este lugar sagrado”.
«A exposição Pare! na G-4, ao lado de Vergara e Escosteguy, cujo happening “foi a minha primeira experiência no sentido de colocar o espectador dentro de uma estrutura de madeira, revestida de plástico transparente, dentro do qual ficava preso (o plástico era grampeado depois) como em uma jaula. Pelo lado de fora, eu pintava o plástico com spray colorido, fazendo os espectadores desaparecerem paulatinamente por detrás das cores. Acabando a pintura, estava acabado o happening e os espectadores tinham de debater-se lá dentro para arrebentar a estrutura de madeira e libertar-se. Pregado por fora, havia um cartaz: Elevador Social.
«A filmagem de Ver e Ouvir, de Antonio Carlos Fontoura, cuja terceira parte, ” Os Desconhecidos”, ” foi quase totalmente rodada na rua, com os quadros e objetos na calçada, no meio do tráfego, do povo, com entrevistas de som direto e usando a técnica do cinema-verdade. Para mim, essa experiência foi vital”.
«Enfim, “A Marmita” – primeira tentativa de uma forma de participação maior por parte do espectador, ao sugerir que ele segurasse a alça do utensílio” – e as duas peças enviadas à IX Bienal de São Paulo, “Sempre Perto de Ti” e “A Cidade”, “em que os espectadores, em número de dois, entram em cada casa-abrigo, totalmente de plástico e em número de quatro; de dentro do abrigo, de estrutura tão leve que pode ser deslocado com facilidade pelo casal, pode-se ver o mundo exterior, através de uma viseira de plástico”.»
E Gerchman concluía seu depoimento fazendo uma verdadeira profissão-de fé em versos:
«Dar, realisticamente, imagens urbanas / Múltiplas, facetadas, simultâneas / Mural fotográfico para ser lido / Somar indefinidamente novas imagens/ Envolvido pelos acontecimentos / O artista testemunha / E faz-se presente.»
A ida aos Estados Unidos
e o filme colorido
Conquistando em 1967 o prêmio de viagem ao estrangeiro do Salão Nacional de Arte Moderna, em 1968 o artista parte para os Estados Unidos da América, vivendo até 1972 em Nova Iorque, realizando inclusive nessa cidade individuais, mas sobretudo expandindo o seu mundo de idéias em contato com o universo cultural norte-americano.
Ao regressar ao Brasil, em 1972, concebe e dirige um filme em cores de 35 mm, Triunfo Hermético. Fazendo o balanço de sua carreira até então, efetua em 1973 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e em 1974 no de São Paulo importantes exposições, realizando também em 1974 uma individual na Galeria Luís Buarque de Holanda / Paulo Bittencourt, do Rio de Janeiro, na qual expõe um ambiente com espelhos e faz projeções de filmes Super-8 (Behind the Broken Glass).
Co-fundador e diretor da revista de vanguarda Malas artes (1975-76), Gerchman dirigiu entre 1975 e 1978 a Escola de Artes Visuais – INEART do Parque Lage (RJ)1 conseguindo transformá-la de reduto do academicismo num laboratório de criatividade.
Em 1978, com bolsa da The John Simon Guggenheim Memorial Foundation, Gerchman mais uma vez visitou os Estados Unidos, passando também por México e Guatemala; realizaria nova viagem ao exterior em 1982, a convite do DAAD – Deutsche Akademischer Austauschdienst Künstler Program -, permanecendo cerca de um ano em Berlim como artista residente.
Obras e exposições
Rubens Gerchman, que em 1981 realizou um painel de azulejos para o edifício do SESC em São Paulo – Fábrica Pompéia, a convite da arquiteta Lina Bo Bardi, recebeu nesse mesmo ano o Golfinho de Ouro – Prêmio Governador do Estado do Rio de Janeiro como Personalidade em Artes Plásticas.
Desde então tem exposto com regularidade, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas também em Joinville, Porto Alegre, Curitiba, Caxias do Sul, Salvador e João Pessoa, bem como em Nova Iorque (1971, 1972, 1981, 1993) México (1980). Paris (1990), Amsterdam (1991), Bogotá (1993) etc. Por outro lado, tem participado de importantes coletivas no Brasil, e em cidades como Paris, Buenos Aires, Córdoba, Calí, Tóquio, Nova Iorque, Medellín, Bruxelas, Londres, México, Toronto, Washington, Lisboa, Berlim, etc.
Mutação artística
A principio, nos anos iniciais da década de 1960, Gerchman praticou uma arte de cunho expressionista voltada para a realidade cotidiana, tal como refletida nas páginas dos jornais e das revistas populares. Foi o momento das “moradias coletivas”, em que o espaço da tela via-se cumulado de rostos indefinidos, comprimindo-se, espremendo-se, anulando-se uns aos outros na rua, na praia, nos estádios – a multidão anônima, sonhadora, facilmente iludível pelos carnês fartura e outras promessas de felicidade nunca concretizadas.
Suas pinturas e relevos de então representam a fauna pobre do subúrbios, “desaparecidos” e “professorinhas”, “belas lindonéias” e torcedores de futebol, operários para os quais “não há vagas” ou meros passageiros enlatados em ônibus ou em elevadores, tudo extravasado com deliberado mau gosto, sintetizando o kítch e o cafajestismo estético, e não raro acompanhado de palavras ou mesmo frases completas, do tipo “Assegure seu Futuro” ou “Vai Comer e Morar um Ano de Graça com Toda a Família”, repisando a imagem, enfatizando o conceito que a figura expressa.
Após curto intervalo em que enfocava os elementos naturais ou produzia esculturas-palavras – “AR”, “SOS”, etc. -, Gerchman embarca para os Estados Unidos com o prêmio de viagem do Salão de 1967. Em Nova Iorque, onde residiu quatro anos, atravessa uma fase de reflexão, na qual aprimora o seu fazer estético (“no Brasil me acusavam de ser um desleixado”), tornando-se mais exigente com a parte artesanal do seu trabalho.
Experimentação constante
Ao mesmo tempo medita :
«Aqui no Brasil diziam que eu era Pop. Fui checar as fontes e nada vi igual ao que fazia, a não ser alguma semelhança temática em murais realizados em comunidades marginais, de porto-riquenhos e chicanos.»
Por um momento pensou em ficar, em instalar-se definitivamente em Nova Iorque. Viu, em seguida, a inutilidade desse esforço, e de longe, casualmente ao ler Tristes Tropiques de Levy-Strauss, redescobriu o Brasil.
Ao voltar, em 1972, produz um filme altamente simbólico, Triunfo Hermético, ao mesmo tempo em que retoma a pintura, fazendo uso de grandes suportes, que preenche em pinceladas largas e cheias de violenta cor com figuras que quase se diluem na abstração pura. O tema indígena aparece brevemente por essa época em sua produção – cujo balanço até então, apresentado em mostras efetuadas em outubro de 1973 e março de 1974 nos Museus de Arte Moderna carioca e paulista, parecia liberar o artista para novos vôos.
Reassumindo, por volta de 1975, certos caminhos já trilhados mais de dez anos antes (Trabalhador morreu com maconha na mão, 1976; Bandeira 2 na Vila Keneedy, 1977; Strip-Tease, 1977; Só Risos, 1978.
Em Virgem dos Lábios de Mel, e Mona Lou, de 1975, que praticamente retomam A Bela Lindonéia, de 1966), Rubens Gerchman dá contudo provas de hesitação ou de incerteza, muito embora sua produção já então revelasse uma interiorização maior, um Gerchman mais consciente e mais contido.
Uma visão particular do
ser humano
Tanto na exposição Boa Noite, de 1977, com música de Jards Macalé, quanto nas mostras Voyeur Amoroso, de 1981, e Clara Manhã, de 1985, Gerchman retoma o fio de sua trajetória, entregando-se gostosamente à pintura enquanto pintura.
Assim é que, se até fins da década de 1970 o leit-motiv da arte de Gerchman era a solidão do homem na cidade grande, a partir da década de 1980 o artista perde a agressividade e abandona o cáustico tom de denúncia e de crítica social.
Síntese de uma carreira
No texto introdutório da mostra de 1986 efetuada na Galeria Montesanti, em São Paulo, Frederico de Morais, um dos críticos mais constante de Gerchman, sintetiza os quase 25 anos da carreira do artista, concluindo por esse trecho significativo:
«Digamos, para simplificar, que de início seu olhar estava voltado para o que acontecia do lado de fora, na urbs, nos meios de comunicação massiva. Anos 60 fase negra, imagens fortes, marcadamente sociais. Nos anos 70, mais reflexivos, Gerchman interiorizou estas imagens, ou melhor, buscou-as no seu circuito mais próximo e íntimo, como que trocou o jornal pelo álbum de família.
«No primeiro bloco, havia um certo tom de raiva, uma postura mais crítica, as imagens chegando a ser recortadas em madeira, como se ele quisesse carregá-las, como o operário carrega sua marmita. Recorte agressivo no estrato social brasileiro.
«No segundo bloco emerge a própria história do artista, sua biografia, um Mercury, o filho, Mira, o pai, imagens carregadas de lirismo e poesia. Hoje, todas estas imagens, já tão nossas, se confundem ou se diluem na própria matéria pictórica.
«O grande amor de Gerchman é, sempre foi, a pintura, que ele respira como o ar que o mantém vivo, que ele faz confundir integralmente com sua vida. Como se viver, para ele fosse produzir imagens, isto é, pinturas. Porque, hoje, mais livre, tudo nele vira pintura, de menino sentado no cocuruto da pedra como um pequeno monge a contemplar as irrigações gráficas no lago da tela, ou um petit tarzan engatinhando na selva da cidade grande, o menino no colo da mãe, entre as pernas do pai, jogando futebol de várzea num subúrbio qualquer do Rio, menino que some para reaparecer depois, já homem, no banco de trás, transando aquela que já foi Miss. Madura, a pintura de Gerchman explode generosa, farta, avassaladora mesmo, sem qualquer compromisso estilístico, ora crescendo como uma vegetação de arabescos, de grafitos, quase-letras, ora criando áreas compactadas, de cores surdas ou vibrantes.
«O coração vibra, é tempo de pintura. Gerchman está feliz, é isso o que diz sua pintura atual.»
Fonte: CD-Rom «500 Anos de Pintura Brasileira»
Foto meramente ilustrativa